quinta-feira, 24 de março de 2011

Washington Novaes, Negro Jobs e a dor do outro que a gente não sente

É, a gente quer viver todo direito
A gente quer viver todo respeito
A gente quer é ser um cidadao
A gente quer viver uma nação
                                  Gonzaga Jr.



Você sente a dor do outro? Ou nunca soube o que é exclusão social?
 

Chorei ao ler o artigo do jornalista Washington Novaes (O Popular, 24/03/2011), que reproduzo abaixo. Seu texto calou profundo. É certo que não apenas Negro Jobs (in memorian) tenha apresentado projeto que pede a instalação de banheiros públicos no Centro da Capital. Mas de fato talvez a iniciativa mais recente, tendo sido do saudoso ex-vereador por Goiânia (motivo de chacota para muitos), simbolize com maior força a necessidade de muita gente excluída e desprezada por grande parte dos supostos munícipes.

Ainda quando estudante, muitas vezes animei mobilizações na Praça do Bandeirante, centro de Goiânia, sempre palco de atos de luta dos movimentos estudantil, sindical, popular. Lá, além de ouvir as lideranças, ouvia a população. Entre as pessoas, muitos idosos, pedintes de esmola, moradores de rua, crianças em situação de rua (que ali dormiam, pelas calçadas). Elas também eram motivo de chacota, como o são até hoje. Mas surpreendiam os desavisados. Demonstravam sabedoria e expressavam opiniões, ideias, reivindicavam, mesmo diante da condição sub-humana.

Faço minhas as palavras de Washington Novaes. Quiçá os poderes públicos instalem banheiros públicos no centro da capital (entre tantas outras obras necessárias). Quiçá as pessoas que nunca viveram dificuldade extrema consigam olhar para além do próprio umbigo e sentir a dor do outro, que mora ao lado e também "quer ser cidadão", como canta Gonzaguinha.

Cláudio Marques.



A sabedoria do Negro Jobs

Washington Novaes

Ao informar sobre o sepultamento do vereador Negro Jobs, noticiou este jornal que "ele deixa dois projetos inacabados. Um deles o tornou conhecido na política local: instalar banheiros públicos no Centro da Capital" (12/3).

A memória dá um salto no tempo. Quando se mudou para Goiânia (1982), ao chegar para uma reunião dos editores do jornal que viera dirigir, o autor destas linhas recebeu a notícia de que o diretor de um banco lá estivera para pedir que não se publicasse a notícia levada por um homem "desequilibrado", que lá fora se queixar de haver sido agredido pelos seguranças da agência. Dizia o diretor que ele recebera "uns petelecos no ouvido" por insistir em abrir uma conta corrente, quando era evidente tratar-se de um desequilibrado, a quem não se poderia confiar um talão de cheques - e tanto era assim que o homem carregava um penico dentro de um saco, pendurado às costas. E como não arredasse pé, fora posto para fora à força.

A notícia no jornal já estava redigida pela então repórter Lisa França: o homem se queixava de que era aposentado por incontinência urinária - por isso carregava o urinol no saco, já que não queria aliviar-se em qualquer lugar público; e queria guardar sua poupança numa conta bancária perto de sua casa; mas o banco não aceitava, dizia que não poderia dar-lhe um talão de cheques - naquele dia, mais uma vez; e como ele protestasse com veemência, fora posto para fora aos safanões e bofetões. Sugeri à repórter que talvez fosse o caso de ir à casa do queixoso e pedir informações sobre ele, já que era realmente estranho alguém andar com um penico às costas e querer abrir conta num banco. Além do mais, pessoas na redação diziam que o diretor do banco era uma pessoa séria, equilibrada. A repórter não concordou: "Já fiz tudo o que as regras da redação mandam" - disse. "Ouvi os dois lados interessados na questão; e quanto a ele ser desequilibrado, todo dia o jornal publica atos e declarações inteiramente desequilibradas de pessoas como o Delfim Neto (então ministro da Fazenda) e o Galveas (presidente do Banco Central) e ninguém vai à casa deles perguntar se eles são bons da cabeça". Achei divertido e instigante e propus levarmos o tema à reunião dos editores.

Lá, a discussão pegou fogo, como sempre quando o tema é a loucura, o desequilíbrio, por aí. Alguns editores achavam que não se devia publicar a notícia, porque o jornal correria o risco de tornar-se o "refúgio de todos os desequilibrados". Outros, entendiam que se devia publicar. A certa altura, interveio o editor Edson Almeida: "Mas esse homem é um cidadão exemplar. Ele anda com o penico às costas porque não quer emporcalhar a cidade, fazer xixi em qualquer lugar. E Goiânia não tem banheiros públicos." Decidiu-se então publicar duas páginas no jornal, com a opinião de cada editor. E um editorial cobrando da Prefeitura que implantasse sanitários públicos". E ainda houve outros desdobramentos.

Vinte e nove anos passados, lê-se no jornal que o vereador Negro Jobs morreu sem conseguir concretizar seu projeto de implantar banheiros públicos no Centro de Goiânia. Seu filho promete levar a luta à frente. Nessas quase três décadas, a população da cidade dobrou. Cerca de um terço das pessoas, segundo as notícias, desloca-se a pé pela cidade - o que deve significar cerca de 400 mil pessoas. Só nas proximidades dos mercados públicos ou na região do comércio em Campinas, são milhares todos os dias, dependendo, em caso de urgência, da boa vontade de comerciantes ou donos de bares. Correndo riscos, como contou certa vez num jornal o ator Paulo Autran: uma tia dele, já velhinha e que morava em Copacabana, no Rio, não saía mais de casa, por temer as consequências; mas tanto os parentes insistiram que um dia ela colocou seu melhor vestido, de bolinhas, e foi à rua; mas, assaltada por uma necessidade urgente, recorreu a um botequim, onde o dono, sacudindo os ombros, lhe disse que, se quisesse, poderia usar o sanitário aos fundos; foi, mas a porta não fechava; e quando estava sentada sobre o vaso sanitário, em meio à escuridão, entrou um bêbado e, sem ver nada, descarregou sobre seu colo, seu peito, pernas, tudo. A velhinha voltou para casa e nunca mais saiu.

É inacreditável o descaso do poder público com essa parte da população que se desloca sobre os próprios pés. São pessoas que não poluem o ar com o uso de veículos, não contribuem para congestionamentos, não ocupam espaços estacionando veículos, em nada agravam os já complicados problemas urbanos. Mas não têm direitos. E não apenas os de sanitários. Ninguém zela pelas calçadas (onde elas existem) em que transitam. Não se impõe rigor no respeito às faixas de pedestres. Nada.

Foi preciso que uma pessoa como o Negro Jobs por elas se interessasse e tentasse legislar a respeito. Afinal, ele passou a maior parte da vida como pedestre, "ainda pequeno começou a ajudar a família engraxando sapatos, vigiando carros e vendendo jornais. Foi serralheiro, mecânico, sapateiro, marceneiro e artesão", além de vendedor de pizzas"(O POPULAR, 12/3). Só uma pessoa assim para levar ao âmbito do poder um dos dramas das pessoas humildes. Negro Jobs certamente teria entendido os problemas do homem com o penico às costas e os da tia do Paulo Autran.
Esperemos que alguém mais se toque.

Washington Novaes é jornalista

Disponível em http://www.opopular.com.br/#24mar2011/opiniao-artigos-59526/da_redacao_-_a_sabedoria_do_negro_jobs (acesso em 24/03/2011)

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